Que exista alguém contemporâneo do
aparecimento daqueles epítetos colectivos, é muito pouco provável. Mas que durante
décadas eles serviram de referente e de auto-referência aos alunos do ensino
técnico (“Costeletas“) e do liceal (“Bifes”), é uma memória conservada e acarinhada
pelos sobrevivos de várias gerações que as assumiram.
Extravasando
dos círculos estudantis, essas designações popularizaram-se e ainda hoje também
delas se lembra uma parte da população de Faro. Do porquê, do como e quando das
mesmas, não há, que saibamos, registo escrito, mas pode presumir-se que terão
surgido nos finais dos anos trinta do século XX. Rogério
Coelho, que em 1942 ingressou na Escola Tomás Cabreira, recorda que, à data, já
o seu uso era rotineiro e sobejamente conhecido. E acrescenta que, por essa
altura, constava que o involuntário autor de tais alcunhas tinha sido um indeterminado
aluno da referida escola, no tempo em que um puritano docente liceal reprovava
os namoros entre estudantes do respectivo estabelecimento, punindo por isso os
infractores. Então, pressupondo pôr-se assim a salvo do castigo, a rapaziada do
liceu começou a fazer a agulha para as raparigas da escola, invadindo o costumeiro
“território de caça” dos moços da “Tomás Cabreira”. E contra isto se insurgiu o
“anónimo” aluno, considerando uma afronta “que
estes gajos ricos do liceu que têm dinheiro para comer bifes venham roubar as
moças dos pobres que apenas têm dinheiro para comer costeletas”.
Na realidade, ciosas das suas prerrogativas, interesses e
pergaminhos, as famílias ricas não aceitavam dar aos seus filhos outra escolaridade
que não fosse a do liceu, por onde passavam os futuros doutores, engenheiros e
arquitectos. Mas se filho de rico não ingressava numa escola técnica, também
para os menos ricos, mas abastados, tal estava fora de questão: colidia com o
prestígio (real, suposto, ou ambicionado) da família e a auto-estima dos seus
jovens.
No entanto, e como não poderia deixar de ser,
nem a esmagadora maioria dos alunos liceais provinha desse meio, nem a maior
parte dos que ingressavam no ensino técnico era oriunda de lares pobres. De
facto, uns e outros, juntos, somavam a minoria de jovens que, nessa época e até
à instauração da democracia, tinha a possibilidade (e a felicidade) de
ingressar no ensino secundário. Tratava-se, duma minoria que, salvo poucas
excepções, se enquadrava no estrato social então vulgarmente rotulado de “remediado”.
Por
certo, foi para enfatizar o seu protesto, que o “proto-costeleta” estremou a situação
económica dos dois grupos, classificando-os, de modo redutor e hiperbólico, de
ricos e pobres. Se por aí se tivesse ficado,
tal desabafo cairia no
esquecimento e hoje talvez não houvesse histórias de “costeletas” e “bifes” para
recordar e contar. Porém, foi feliz na espontânea e sintética alusão que fez
aos hábitos alimentares das partes, porque desse modo traçava uma mais
intuitiva e ajustada linha divisória entre dois conjuntos economicamente
próximos, mas sócio-culturalmente diversos. Com aquelas imagens do concreto,
mas plenas de valor simbólico, evocava de imediato as condições de vida, e as visões
do mundo, ideias e projectos delas emergentes, e que faziam a diferenciação
mais efectiva entre um grupo e o outro.
Todavia,
nem o “proto-costeleta”, nem os seus ouvintes, terão sequer imaginado que um dito
ocasional, a propósito duma disputa de circunstância, viria a ecoar noutros
confrontos pacíficos que, durante décadas, os dois grupos de estudantes travariam
entre si. Mas, pela economia verbal que representavam e pela sua riqueza
expressiva no contexto, as designações do consumido (costeletas, bifes) logo
passaram a servir de referência aos seus putativos consumidores preferenciais,
ocorrência que ambos os lados assimilaram pacificamente, generalizando, sem
peias, o uso das alcunhas, não obstando o facto de, por vezes, serem expressas
em tom depreciativo por uma parte em relação à outra.
Muito
menos poderia ter passado pela cabeça do “proto-costeleta” e seus epígonos, que
a assumpção desses epítetos viesse a contribuir para uma compreensão mais
profunda e bilateral, daquilo que “bifes” e “costeletas” tinham em comum e de
diferente.
Disto se dará conta em
artigo próximo.
(*) Publicado no Jornal
“O OLHANENSE” 01/12/11