O Dr. José Pedro Machado,
o Ensino
Técnico Profissional e Frau Merkel
É possível que os
colegas costeletas estranhem o título desta reflexão, ditada por outras que
desde há tempos me ocupam o tempo sobrante das actividades académicas que
teimosamente continuo a tentar desenvolver, dado que nos tempos que vão
correndo tudo o que envolva Humanidades não lucrativas pouco incentivo
encontra, sobretudo fora de um círculo restrito de felizes contemplados. De
qualquer maneira, não tenciono falar de mim, pois para esse tipo de iniciativas
mais ou menos egocêntricas já há por aí muita gente e em todos os sectores da
vida portuguesa, ainda que as experiências adquiridas ao longo das décadas que
se passaram desde que em 1962 terminei a minha passagem pela então Escola
Industrial e Comercial de Faro me confiram, pelo menos, autoridade nalgumas
matérias.
Mas vamos ao que
interessa neste momento, para que finalmente se compreendam as razões que me
levam a misturar duas pessoas tão diferentes à volta do tema nem sempre fácil
do Ensino Técnico Profissional. Há poucas semanas tive a honra de representar a
Academia de Marinha numa sessão solene na Academia Portuguesa da História, sucessora
da velha Academia fundada por D. João V, positivamente magnânimo em termos culturais.
Tratava-se de homenagear um dos académicos mais brilhantes da agremiação, o Dr.
José Pedro Machado, cujos trabalhos como filólogo, dicionarista, historiador e
arabista se situam entre o que de mais importante se produziu em Portugal. O
seu vasto trabalho, que só terminou com a morte em 2005, foi reconhecido no
estrangeiro, o que nem sempre acontece, pertencendo a associações científicas
de diversos países. Por esta altura é muito provável que os “costeletas” já
tenham reconhecido o nome desta figura grada da cultura portuguesa, pois José
Pedro Machado nasceu em Faro em 1914, cidade que lhe atribuiu em 1997 a medalha
de ouro e um lugar na toponímia.
Mas a questão não se
limita a um simples lugar de nascimento, por vezes apenas uma coincidência fugidia
no historial de uma vida. O que nos interessa é que José Pedro Machado foi
professor do Ensino Técnico Profissional durante quatro décadas, ainda que
nunca tenha leccionado em Faro. Quer isto dizer que, ao contrário do que muitos
pensam, aliás por razões nem sempre suficientemente claras, o Ensino Técnico
Profissional não era um ensino de segunda linha, destinado aos “pobrezinhos”,
ainda que algumas diferenças estatutárias relativas ao professorado
contribuíssem para transmitir essa ideia. O que nos interessa é a qualidade
geral do ensino e do quadro de docentes que o servia. E neste ponto,
seguramente, todos estamos de acordo quanto ao seu valor. Participar na homenagem a um grande nome da
cultura portuguesa que pertenceu a esse grupo honrou-me particularmente, pois
frequentei em Évora e em Faro o referido ramo de ensino, antes de enveredar
definitivamente pelas Humanidades, e também por se tratar de uma figura
algarvia, terra a que me prendem laços familiares dos mais profundos e
recordações de juventude das mais gratas, quando ainda não havia hotéis no
Algarve (!).
A figura de José Pedro
Machado, que também escreveu bastante sobre temas algarvios e a quem se deve
uma tradução do Alcorão feita directamente da língua árabe, demonstra, se tal
fosse necessário, a elevada qualidade dos professores a quem ficámos a dever
parte importante da nossa formação, independentemente dos percursos que depois seguimos.
O Ensino Técnico Profissional revelava-se, em múltiplos aspectos, mais moderno
que o Ensino Liceal da época, em parte devido a uma relação directa com as
realidades e imposições do mundo do trabalho. Esta circunstância determinou
que, por exemplo, em Angola os cursos técnicos tivessem maior procura por parte
dos potenciais continuadores de empresas lá estabelecidas, eliminando ou
esbatendo muito a pretendida oposição ricos-pobres, mais sentida na Metrópole,
sem esquecer que os “bifes” não eram todos filhos de famílias abastadas. As
simplificações em demasia nem sempre representam a realidade.
Seja como for, o fim do
Ensino Técnico teve bastante a ver com uma visão distorcida da realidade social
e das necessidades do país, progressivamente dotado de licenciados em número
crescente, apesar de uma política de numerus
clausus, compensada pela
multiplicação dos estabelecimentos politécnicos e das universidades privadas.
Em consequência de uma falsa percepção social e de uma pior estratégia de
desenvolvimento, dificultámos a formação eficiente de quadros técnicos e médios,
quase todos agora contemplados com o muito apetecido título de doutor. Se essa
formação massiva de licenciados tivesse sido acompanhada por uma alteração da
mentalidade nacional, distinguindo definitivamente entre formação intelectual e
empregabilidade, o problema não seria tão grave, nem a panaceia proposta, a
velha e conhecida emigração, tão necessária. Em resumo, falta-nos aquilo que o
Ensino Técnico e o Ensino Médio facultavam, ou seja, criamos uma estrutura
macrocéfala, com excesso de oferta de licenciados, mestre e doutores, e falta
de gente apta nos escalões básicos e, sobretudo, médios. A adopção do discutido
Processo de Bolonha, cujo objectivo declarado é o de uniformizar o Ensino
Superior na União Europeia não contribuiu para atenuar esta situação, antes
pelo contrário.
Há tempos atrás, a
chanceler alemã Angela Merkel referiu ter Portugal licenciados em demasia,
declaração ditada pela lógica germânica, pouco dada a sentimentalismos, que
irritou muitos portugueses de nacionalismo fácil e quase sempre inconsequente.
Se tivermos em conta o número brutal de licenciados desempregados ou com
trabalhos desprovidos de futuro, teremos que reconhecer a Frau Merkel alguma
razão. Devemos aceitar que a nossa margem de manobra numa economia dita global e
como membros de uma entidade política pouco ou nada interessada em questões
nacionais, é mínima, o que não nos dispensa de reflectir nos problemas em
termos de futuro e enquanto cidadãos. Se formos pragmáticos torna-se evidente que
a produção continuada de diplomados nas franjas superiores do ensino não
facilitará a solução do problema, tanto mais que existe uma atávica tendência
para minimizar os que por alguma razão não atingem essa fasquia, circunstância
relacionada muito mais com a mentalidade portuguesa do que com este ou aquele regime.
A recuperação coerente do Ensino Técnico, aberto a outros estudos mas com especial
incidência na habilitação profissional dos alunos, não deixaria de contribuir
para mitigar um problema cuja gravidade não se pode resolver com imigração ou
emigração. Na verdade, parece que temos muita gente mal preparada para o que
faz e excesso de gente demasiadamente preparada para o que não quer fazer, uns
abaixo, outros acima. A modernidade é técnica, não é “doutoral”, o que não representa,
naturalmente, um elogio da incultura.
Já vai longa esta
conversa, que não pretendo saudosista, mas que não pode esquecer a experiência
do passado. Quero apenas sublinhar que um ensino que teve professores como o
Dr. José Pedro Machado e alunos como o actual primeiro magistrado da Nação, não
era, decididamente, um ensino sem perspectivas e sem qualidades, uma espécie de
fábrica de serralheiros, de amanuenses ou de fadas-do-lar, como alguns
teimosamente pretendem, desprezando de forma implícita todos os que honraram
com o seu trabalho e com as suas capacidades as profissões para as quais a
Escola os preparou, possibilitando que muitos subissem ainda mais alto. Que não
o esqueçamos!
Vasco Gil Mantas
(Sócio Costeleta nº623 - Foto na coluna dos Colaboradores)