sexta-feira, 19 de junho de 2015

PARA NÃO ESQUECER


O Dr. José Pedro Machado, 
o Ensino Técnico Profissional e Frau Merkel

É possível que os colegas costeletas estranhem o título desta reflexão, ditada por outras que desde há tempos me ocupam o tempo sobrante das actividades académicas que teimosamente continuo a tentar desenvolver, dado que nos tempos que vão correndo tudo o que envolva Humanidades não lucrativas pouco incentivo encontra, sobretudo fora de um círculo restrito de felizes contemplados. De qualquer maneira, não tenciono falar de mim, pois para esse tipo de iniciativas mais ou menos egocêntricas já há por aí muita gente e em todos os sectores da vida portuguesa, ainda que as experiências adquiridas ao longo das décadas que se passaram desde que em 1962 terminei a minha passagem pela então Escola Industrial e Comercial de Faro me confiram, pelo menos, autoridade nalgumas matérias.
Mas vamos ao que interessa neste momento, para que finalmente se compreendam as razões que me levam a misturar duas pessoas tão diferentes à volta do tema nem sempre fácil do Ensino Técnico Profissional. Há poucas semanas tive a honra de representar a Academia de Marinha numa sessão solene na Academia Portuguesa da História, sucessora da velha Academia fundada por D. João V, positivamente magnânimo em termos culturais. Tratava-se de homenagear um dos académicos mais brilhantes da agremiação, o Dr. José Pedro Machado, cujos trabalhos como filólogo, dicionarista, historiador e arabista se situam entre o que de mais importante se produziu em Portugal. O seu vasto trabalho, que só terminou com a morte em 2005, foi reconhecido no estrangeiro, o que nem sempre acontece, pertencendo a associações científicas de diversos países. Por esta altura é muito provável que os “costeletas” já tenham reconhecido o nome desta figura grada da cultura portuguesa, pois José Pedro Machado nasceu em Faro em 1914, cidade que lhe atribuiu em 1997 a medalha de ouro e um lugar na toponímia.
Mas a questão não se limita a um simples lugar de nascimento, por vezes apenas uma coincidência fugidia no historial de uma vida. O que nos interessa é que José Pedro Machado foi professor do Ensino Técnico Profissional durante quatro décadas, ainda que nunca tenha leccionado em Faro. Quer isto dizer que, ao contrário do que muitos pensam, aliás por razões nem sempre suficientemente claras, o Ensino Técnico Profissional não era um ensino de segunda linha, destinado aos “pobrezinhos”, ainda que algumas diferenças estatutárias relativas ao professorado contribuíssem para transmitir essa ideia. O que nos interessa é a qualidade geral do ensino e do quadro de docentes que o servia. E neste ponto, seguramente, todos estamos de acordo quanto ao seu valor.  Participar na homenagem a um grande nome da cultura portuguesa que pertenceu a esse grupo honrou-me particularmente, pois frequentei em Évora e em Faro o referido ramo de ensino, antes de enveredar definitivamente pelas Humanidades, e também por se tratar de uma figura algarvia, terra a que me prendem laços familiares dos mais profundos e recordações de juventude das mais gratas, quando ainda não havia hotéis no Algarve (!).
A figura de José Pedro Machado, que também escreveu bastante sobre temas algarvios e a quem se deve uma tradução do Alcorão feita directamente da língua árabe, demonstra, se tal fosse necessário, a elevada qualidade dos professores a quem ficámos a dever parte importante da nossa formação, independentemente dos percursos que depois seguimos. O Ensino Técnico Profissional revelava-se, em múltiplos aspectos, mais moderno que o Ensino Liceal da época, em parte devido a uma relação directa com as realidades e imposições do mundo do trabalho. Esta circunstância determinou que, por exemplo, em Angola os cursos técnicos tivessem maior procura por parte dos potenciais continuadores de empresas lá estabelecidas, eliminando ou esbatendo muito a pretendida oposição ricos-pobres, mais sentida na Metrópole, sem esquecer que os “bifes” não eram todos filhos de famílias abastadas. As simplificações em demasia nem sempre representam a realidade.
Seja como for, o fim do Ensino Técnico teve bastante a ver com uma visão distorcida da realidade social e das necessidades do país, progressivamente dotado de licenciados em número crescente, apesar de uma política de numerus clausus, compensada pela multiplicação dos estabelecimentos politécnicos e das universidades privadas. Em consequência de uma falsa percepção social e de uma pior estratégia de desenvolvimento, dificultámos a formação eficiente de quadros técnicos e médios, quase todos agora contemplados com o muito apetecido título de doutor. Se essa formação massiva de licenciados tivesse sido acompanhada por uma alteração da mentalidade nacional, distinguindo definitivamente entre formação intelectual e empregabilidade, o problema não seria tão grave, nem a panaceia proposta, a velha e conhecida emigração, tão necessária. Em resumo, falta-nos aquilo que o Ensino Técnico e o Ensino Médio facultavam, ou seja, criamos uma estrutura macrocéfala, com excesso de oferta de licenciados, mestre e doutores, e falta de gente apta nos escalões básicos e, sobretudo, médios. A adopção do discutido Processo de Bolonha, cujo objectivo declarado é o de uniformizar o Ensino Superior na União Europeia não contribuiu para atenuar esta situação, antes pelo contrário.
Há tempos atrás, a chanceler alemã Angela Merkel referiu ter Portugal licenciados em demasia, declaração ditada pela lógica germânica, pouco dada a sentimentalismos, que irritou muitos portugueses de nacionalismo fácil e quase sempre inconsequente. Se tivermos em conta o número brutal de licenciados desempregados ou com trabalhos desprovidos de futuro, teremos que reconhecer a Frau Merkel alguma razão. Devemos aceitar que a nossa margem de manobra numa economia dita global e como membros de uma entidade política pouco ou nada interessada em questões nacionais, é mínima, o que não nos dispensa de reflectir nos problemas em termos de futuro e enquanto cidadãos. Se formos pragmáticos torna-se evidente que a produção continuada de diplomados nas franjas superiores do ensino não facilitará a solução do problema, tanto mais que existe uma atávica tendência para minimizar os que por alguma razão não atingem essa fasquia, circunstância relacionada muito mais com a mentalidade portuguesa do que com este ou aquele regime. A recuperação coerente do Ensino Técnico, aberto a outros estudos mas com especial incidência na habilitação profissional dos alunos, não deixaria de contribuir para mitigar um problema cuja gravidade não se pode resolver com imigração ou emigração. Na verdade, parece que temos muita gente mal preparada para o que faz e excesso de gente demasiadamente preparada para o que não quer fazer, uns abaixo, outros acima. A modernidade é técnica, não é “doutoral”, o que não representa, naturalmente, um elogio da incultura.
Já vai longa esta conversa, que não pretendo saudosista, mas que não pode esquecer a experiência do passado. Quero apenas sublinhar que um ensino que teve professores como o Dr. José Pedro Machado e alunos como o actual primeiro magistrado da Nação, não era, decididamente, um ensino sem perspectivas e sem qualidades, uma espécie de fábrica de serralheiros, de amanuenses ou de fadas-do-lar, como alguns teimosamente pretendem, desprezando de forma implícita todos os que honraram com o seu trabalho e com as suas capacidades as profissões para as quais a Escola os preparou, possibilitando que muitos subissem ainda mais alto. Que não o esqueçamos!

Vasco Gil Mantas
 (Sócio Costeleta nº623 - Foto na coluna dos Colaboradores)

ALMOÇO DE GALA ANUAL COSTELETA

E AQUI VÃO MAIS OITO FOTOS
DO GRANDE ALMOÇO
ANUAL COSTELETA
NO HOTEL D. PEDRO GOLF
EM VILAMOURA










Reportagem fotográfica
do Costeleta Roger