quarta-feira, 8 de março de 2017


Uma crónica especial da nossa colaboradora Professora
LINA VEDES

Ser farense
Há 7o anos os farenses, de uma maneira geral, viviam tranquilos e com poucas ambições, usufruindo relativamente satisfeitos daquilo que a vida lhes proporcionava.
A guerra havia acabado há pouco, as carências económicas eram muitas e o lema de vida era a poupança.  O racionamento dos principais bens de consumo implicava a necessidade de inventar como sobreviver com pouco.
Todos se conheciam, sabiam da vida uns dos outros, criticavam com facilidade a conduta deste ou daquele e procuravam aliviar os dissabores com a ajuda e o convívio de vizinhos e amigos.
Nas noites quentes de Verão, sentados à porta das casas partilhando petiscos e conversas do “diz que disse”, criticavam e não perdoavam os pecadores que eram apontados como traidores, pessoas de mau porte, banidos de uma pretensiosa sociedade. Era uma disputa permanente entre o bem e o mal, entre o amar e o odiar!
Toda a comunidade, utilizando um padrão comum, buscava alento e diversão nas diferentes festividades populares vivendo-as intensamente, dentro ou fora de casa.
Pelo Natal em muitos lares montavam o presépio utilizando musgo e areias de diversas cores, ao dispor na carreira de tiro, cortiças, casas feitas de papel, lagos e rios de pratas de chocolate, sem gastos, utilizando toda aimaginação possível.
À ceia não faltavam filhoses, fatias douradas arroz doce e, por vezes um copito de vinho do Porto ou um licor caseiro.
Para a criançada o momento alto era o sapatinho à chaminé e a convicção de que era o Menino Jesus que colocava os presentes - umas cuecas, umas meias, uma sombrinha de chocolate... rebuçados!
Os comerciantes, principalmente os da R. Santo António, armavam o presépio nas montras das lojas.
Algumas crianças acreditavam que no último dia do ano se travava no céu, uma luta entre o ano velho e o novo. O ano novo vencia e era preciso deitar fora, para a rua, os ”trastes” que existiam em casa.
No primeiro dia de janeiro desciam à cidade grupos de charolas. Vinham dos arredores de Faro com o seu folclore tradicional.
Em novembro os farenses festejavam o dia de S. Martinho. Grupos de crianças nos diversos bairros da cidade, trabalhando em conjunto, transformavam caixotes de madeira em andores e, com os parcos recursos que tinham, embelezavam-nos com pinturas e colagens.
          No dia do santo os mais velhos transportavam o mais pequenito do grupo aos ombros, dentro do andor. la de bigode e patilhas, pintado com uma rolha de cortiça tisnada e iluminado com velas acesas. Percorriam as ruas da cidade cantando para receberem umas castanhas, uns rebuçados ou moedas de cinco tostões:

- S. Martinho Lapa vamos ao larapa
S. Martinho vinho vamos ao copinho!
Ti Manel ceguinho foi ao camarão
Com uma bota rota, outra sem tacão!

No final da noite dividiam o produto das ofertas, um verdadeiro tesouro que os deixava radiantes!
Fora dos limites da cidade e perto da capela a Santo Antônio do Alto, em 1948, O Liceu Nacional de Faro abre portas e a avenida rasgada até ele rompe com a vida rotineira dos farenses.
O ensino liceal vem proporcionar uma onda de juventude vinda de todo o Algarve e até do Alentejo. O farense aprende a olhar para o futuro com confiança perdendo a vida cinzenta que levava.
          Esta agitação juvenil e explosiva mexe, de maneira positiva, com o desenvolvimento cultural e comercial. Casas alugadas a estudantes vêm ajudar orçamentos familiares e ruas inundadas de gente animam os mais cépticos.
O ano lectivo iniciava-se em Outubro com uma sessão solene no ginásio do Liceu na presença de todas as entidades escolares, pessoas destacadas da sociedade civil, do senhor bispo do Algarve, alunos e encarregados de educação. Essa abertura marcava, incisivamente, o cumprimento de horários e o respeito e obediência aos senhores professores e contínuos. Eram definidos espaços diferentes a utilizar por rapazes e por raparigas, condutas comportamentais e a exigência das alunas usarem bata branca e meias até ao joelho.
O Liceu e a Escola comercial não só instruíam como educavam dando continuidade ao rigor das leis sociais e religiosas. Tudo era pecado, tudo parecia ou fazia mal. Rapazes e raparigas não tinham hipóteses de contacto, viviam separados e espartilhados.
O tempo de Carnaval era uma bênção! O espírito carnavalesco rompia receios, afastava tabus, permitindo que os farenses se entregassem à diversão. Brincavam com “partidas” imaginativas: embrulhos com pedras deixados na rua; carteiras presas com fio de pesca, colocadas na passagem das pessoas e, puxadas lentamente, na altura em que alguém tentava agarrá-las; letreiros colocados nas costas que poderiam dizer “VENDE-SE ESTE BURRO” . . .  uma infinidade de situações!
- “No carnaval nada faz mal!”
Nos dias de mascarilhas a cidade saía à rua. A baixa de Faro era o local de eleição. A rua de Santo António estoirava de gente. Pessoas mascaradas de alto a baixo com voz de falsete desfilavam pelas principais artérias a caminho dos clubes, onde orquestras tocavam, permanentemente, animando os bailes. Um verdadeiro rodopio de gente disfarçada que desfilava e gente que assistia à sua passagem. Aconteciam trocas de palavras entre umas e outras que podiam ser divertidas, comprometedoras ou até agressivas.
O Carnaval acabava na terça-feira à meia-noite e a partir desse momento a Igreja impunha recato, pondo final aos bailes e às brincadeiras. Começava a Quaresma, tempo de meditação, tempo de remissão de pecados.
Neste período eram os contratos de amêndoas celebrados entre amigos que animavam. Estes eram contraídos por iniciativa de duas pessoas que o marcavam com os dedos mindinhos enganchados:
“- Contrato, contrato, contrato faremos, sábado de Aleluia o desmancharemos!”
A partir daí e até ao fim da Quaresma, sempre que se encontravam cada contraente tentava ser o primeiro a ordenar:
 “-Ajoelha e reza!”
            No sábado de Aleluia, o grito era:
 “-Ajoelha e oferece!
            As amêndoas tinham de ser pagas no Domingo de Páscoa!
Durante a Quaresma o sentimento religioso do farense exultava-se pela vida de Jesus. Participavam com fé e humildade em todas as procissões, confessavam-se, comungavam, visitavam as Igrejas, respeitavam a abstinência e não comiam carne às sextas-feiras. Era o temor a Deus elevado à potência máxima! No domingo de Páscoa era costume estrear fatiota nova.
            Pela feira de Outubro, a de Santa Iria, também havia o hábito da roupa nova. Feira implicava agitação, novidade, animação, convívio, distracção, alegria. . . Tudo isto acontecia durante as feiras do Carmo e a de Santa Iria no Largo de S. Francisco com imensa gente vinda de fora e a possibilidade de comprar artigos que só apareciam nesta altura, trazidos pelos feirantes.
Os farenses tinham o hábito, muito antigo, de sair para o campo no dia 1º de Maio, Famílias inteiras com cestas de comida juntavam-se a outras famílias para passarem o dia confraternizando saudavelmente. Normalmente era no Rio Seco.
Pela festa da Ascensão de Jesus ao céu, quinta-feira, pela madrugada, o citadino ia ao campo colher a espiga. A simbologia do ramo era intensa, composto por três espigas de trigo para que não faltasse comida durante todo o ano, oliveira pela paz e luz, videira para captar alegria, papoilas, mal- mequeres e alecrim para darem a graça de poderem contar com dinheiro, saúde, amor e força para viver…

Acreditavam, os farenses, na mágica da espiga.
Mas...
O auge de todas as festividades acontecia pelos Santos Populares homenageados, por toda a
comunidade, com entusiasmo e intensa alegria.
Misturando o profano com o religioso acreditavam que António favorecia os casamentos, João abençoava o amor, a sorte e a fortuna e Pedro protegia as viúvas.
Nas ruas não faltavam arraiais festivos com mastros, com bandeiras e balões de papel colorido, manjericos, bailes, fogueiras, pequenos fogos de artifício —” pedinhos de velha”, “b’cheninas”, “estalïnhos” e bombinhas...
Sentados às portas das casas comendo e bebendo em franco convívio, pela noite fora, conversavam, pulavam fogueiras, “tiravam as sortes”.
Moças casadoiras tendo como único objectivo de vida os casamentos não dispensavam os jogos de adivinhação: três papelinhos bem enrolados contendo três nomes masculinos, passados pelo alecrim da fogueira, tinham três destinos diferentes — o fogo, atrás de uma porta e debaixo do travesseiro (o eleito).
            Outra das “sortes” praticadas consistia no corte da parte florida da alcachofra na esperança do renascimento da flor e com ele a confirmação do casamento desejado.
Na alameda João de Deus, durante muitos anos, aconteceram festas populares e algumas incluíram concursos de “Marchas Populares” e “Vestidos de chita”.
No jardim de S. Pedro e na Praça D. Francisco Comes, perto do coreto, na noite de S. João corajosos exibicionistas divertiam-se e divertiam quem quisesse assistir ao espectáculo do “combate de carretilhas”. Era perigosíssimo, ao menor descuido a carretilha podia explodir pois tratava-se de uma espécie de fogo de artifício preso que rabeava pelo chão.
Perto do coreto o combate transformava-se numa competição aguerrida. Os participantes não se intimidavam e podiam concorrer dois ou três em simultãneo ou individualmente. A competição era dispendiosa, não possível às bolsas pobres e a precisão era a “chave do sucesso”: agarrar firmemente a carretilha, acendê-la nas brasas (colocadas num bidão ao dispor dos valentões), fazê-la rodopiar por cima da cabeça e lançá-la no minuto certo, com arte, pondo-a a dançar como que raivosa, esperneando, bufando faíscas até morrer inerte nas pedras da calçada!
O carácter do farense genuíno formou-se nas vivências de todas estas efemérides. O acumular de experiências vividas criou um padrão - SER FARENSE!


Lina  Vedes

Março de 2016 



Recordações e Casos da Vida Real                                 
     De um costeleta aposentado                                          
                                        
                                                                      Paixão Pudim
   A CRISTINA
 
  Recentemente, desloquei-me ao Centro Comercial Colombo, aqui em Lisboa e, fui agradavelmente surpreendido com um inesperado cumprimento. Na minha frente apareceu-me uma simpática senhora acompanhada pelos giríssimos, dois filhos, e um sorriso amável a transparecer cordialidade e amizade.
   Rapidamente reconheci a Cristina... Embora passados uns 20 anos. Tivemos um caso desportivo. Eu, como dirigente do club do bairro e ela na qualidade de atleta, jogadora de basquetebol.
   Certo dia a minha colega de direção, responsável pelo pelouro do desporto, por motivo de doença de um familiar, solicitou-me ajuda no cumprimento de acompanhar as equipas nas deslocações aos jogos. Nesse longínquo período, tínhamos oito equipas quatro masculinas e quatro femininas. Uma das equipas a de seniores femininos tinha uma deslocação a Torres Vedras para um jogo do campeonato regional e lá fui eu prestar serviço de dirigente responsável. Iniciou-se o jogo e logo fiquei surpreendido com o equipamento de uma jogadora que não vestindo os habituais calções brancos usava uns azuis. - o equipamento normal é camisola verde e calção branco. Chamei a atenção para o sucedido e, pela reação das outras jogadoras, logo tive conhecimento que era normal o procedimento da atleta, Tratava-se da melhor jogadora e gostava de dar nas ”vistas”. - Era a Cristina.
   Logo avisei que na próxima vez, ela não jogava se comparecesse com calções diferentes.
   Aconteceu que no fim-de-semana seguinte fomos á Amadora num jogo importante e decisivo para apurar as equipar para a segunda fase. A nossa Cristina apareceu com uns calções cinzentos e não autorizei que jogasse. Perdemos o jogo e fomos eliminados. O treinador, aluno finalista da Faculdade Desportiva que prestava serviços no club, achou exagero a minha decisão e pediu a demissão. O pai da jovem, sócio antigo da coletividade, também não gostou do meu procedimento e barafustou.  
   A Direção reuniu e pus o meu lugar a disposição.

    Felizmente acabaram por reconhecer a minha razão e, nesta e outras ocasiões, fiz prevalecer sempre os valores que aprendi com o nosso querido e amigo professor Américo.